Cordilheira Branca - Peru

Os andes peruanos e uma volta completa na Codilheira Branca.
MTB/Gravel 720km 17190m 60 2 mai/jun 2018

E lá estava eu, a 3100 metros sobre o nível do mar. Me sentia bem, até subir o primeiro lance de escadas. Os primeiros dias de aclimatação na cidade de Huaraz - a cidade mais importante da Cordilheira Branca - foram essenciais para o sucesso da empreitada que passaria os 4500m de altitude algumas vezes. Durante a aclimatação sofri uma queda um pouco grave num descenço da Laguna Wilcacocha, e os meus ralados ardiam como brasa na hora de dormir. Depois da solução de arnica em álcool recomendada pelos nativos, curei a inflamação e estávamos prontos pra iniciar o pedal com a circum-pedalada no Huascaran. Mas quem sabe uma partida de volei, antes disso? Os moradores se divertem nas ruas, instalam redes de volei e contam os pontos com prendedores de roupa nas cordas. Eu e o Guilherme fomos colocados um de cada lado da rede, tratados como gigantes, e num lance decisivo da partida ele torceu feio o pé. E assim começou a nossa viagem… Não lembro quem ganhou no volei.

A Cordilheira Branca conta com 16 picos a cima dos 6000 de altitude, numa extensão de 180km em linha reta, ao lado da Cordilheira Negra, mais baixa. O Huscarán é a montanha mais alta do Peru, com 6768 metros, e demoramos alguns dias pra dar a volta completa, iniciando em Huaraz, cruzando o túnel rodoviário mais alto do mundo, passando por Chacas, Sapcha, Yanama, cruzando o Paso e a Laguna Llaganuco, a Laguna 69 e finalmente terminando a primeira perna da viagem em Yungay. Yungay já foi soterrada completamente por um deslizamento do Huáscaran, em 1970, e hoje está reerguida em nova posição. Estávamos na temporada de maio e junho de 2018.

Depois de subirmos para a Laguna Parón, um dos cenários mais incríveis que já tive o prazer em ver com meus próprios olhos, estávamos com as mochilas montadas para partir rumo ao trekking da Quebrada Santa Cruz. Nesse momento o Guilherme descobriu que precisava voltar ao Brasil o mais rápido possível, por motivos importantes. Pensei em retornar junto, afinal faltavam 40 dias e centenas de km pra finalizar a viagem que tínhamos planejado juntos por tanto tempo. Decidi ficar, mesmo em solitário, e embarquei o meu amigo no primeiro ônibus… e ali estava eu, sozinho, no meio dos Andes Peruanos.

Primeira coisa: colocar a mão na cabeça a gritar AAAAAAAA. Observar a Cordilheira Negra à esquerda, a Branca à direita, e aquele vento contra infernal que sobe o vale exatamente às 13h. Depois disso, montei as coisas na minha mesma velha bike que agora carregava sozinha uma barraca e uma cozinha para duas pessoas, além dos mantimentos para 1 ou 2 dias, água, saco de dormir, câmera, roupas de neve, reparos, mini farmácia, mochila e bastão de trekking. A bicicleta seguia increvelmente boa, leve e manobrável.

O próximo trecho era menos conhecido, menos movimentado e inclusive menos estudado por mim. Eu tinha todos os recursos necessários, dinheiro suficiente, bicicleta em dia, forma física excelente, estava devidamente aclimatado e mesmo assim sentia uma espécie de medo.

Medo de que? Não sei, na hora não tinha tempo pra pensar. Na verdade tinha sim, mas estava com preguiça. Ainda com alguns pontos no joelho enfiei para dentro da minha cabeça que completaria a volta da Cordilheira, como havíamos combinado ainda no Brasil. Tinha esse compromisso comigo mesmo e até com o meu parceiro, imagina voltar pra casa sem a meta concluída? Eu particularmente não gosto.

Entrei no Canon Del Pato, uma estrada com muitos túneis em sequência cravejados na pedra, com apenas uma faixa de carros. Os peruanos, que buzinam de forma agressiva até quando vêem a própria avó na frente do carro, ali - onde existiam placas escrito “BUZINE” - faziam silêncio absoluto. Que raiva que me deu. Seres humanos e mais uma coisa pra eu ficar pensando.

Nos próximos trechos senti solitude, liberdade, raiva, falta de ar, deslumbre, mas quase nunca, ou nunca, de solidão. Passar pelos povoados peruanos fantasiado de robô em cima de uma bicicleta cheia de malas amarradas é quase como andar nu no centro de uma capital. Histórias de ciclistas gringos capturados em estradas quase não utilizadas eram comuns, quis crer que estavam tirando sarro da minha cara, e preferi correr o improvável risco de tomar um tiro do que dar meia volta.

Conheci um gringo na estrada, o novaiorquino John, que carregava um notebook, um drone, uma cozinha e barraca pra 2 pessoas, uma bicicleta com tudo do bom e do melhor, maior bom gosto. Pedalamos alguns dias juntos, trocamos muito conhecimento, desenvolvi meu inglês e ministrei aulas de espanhol durante os dias duríssimos de pedalada. Comemos juntos sentados na sarjeta um par de vezes, e depois de um entroncamento onde ele terminaria a viagem, eu ainda tinha algumas centenas de quilômetros. Senti felicidade ao encontrar alguém, e fiz um amigo pra vida, mas quando me vi sozinho de novo me senti mais aliviado. Poucos momentos me senti tão livre na vida quanto esse, e que sensação incrível estar só. Não sou muito de acreditar em Deus, mas tem algumas coisas que parecem ser colocadas no nosso caminho pra que a gente enxergue a nós mesmos da forma correta.

Finalizei o circuito e fiquei mais 2 semanas em Huaraz estudando, comendo pizza, sentindo saudade, bebendo Cusqueña e licor de coca, escalando em rocha e pedalando no entorno, onde os picos de mais de 4000 metros e lagoas azul-turquesa estão a pouquíssimos quilômetros. Tomei uma van pra Hatun Machay, onde acampei por 2 dias e pude ver o pôr do sol na Cordilheira Huayhuash, a muitos km de distância. Também fiz o trekking da Quebrada Santa Cruz, o segundo mais bonito da América do Sul em minha opinião, coincidentemente, na companhia de um francês também chamado Guilherme. Pude aprender com a cultura peruana da forma mais proveitosa viajando de bicicleta, acredito que não haja forma mais inteligente de se viajar quando buscamos fazer o máximo com o mínimo.

Essa parte do Peru é bastante pobre e mesmo assim pouquíssimas pessoas se encontravam em situação de rua ou pedindo esmola. O custo de vida é extremamente baixo e a economia baseada em agricultura e um pouco de turismo principalmente em Huaraz. Os velhos veículos na rua, ou estão detonados, ou são do formato de Tuc-Tuc. As pessoas caminham quilômetros a pé na sua locomoção ou tomam vans que custam 1 ou 2 reais pra andar quilômetros num ambiente insalubre, onde até ovelha e cachorro pode entrar, abaixo dos berros dos cobradores. As mamacitas carregam seus xales com tudo o que é possível, desde troncos de árvore até crianças, e são fortes como touros. Me pareceu um povo feliz, que canta e dança, sorri, briga e abraça. Toda noite tem festa na rua. Lá são as mulheres que movem a cidade: são guias de turismo, açougueiras, agricultoras, donas de hospedarias e restaurantes. Me impressionei como os gringos (yankees, como chamam os peruanos) mais metidos são desrespeitosos com os nativos e lhes consideram seus servos, e presenciei algumas cenas desagradáveis. Nossa van atolou num penhasco em direção da Laguna Churup, e nenhum dos musculosos que estava dentro pôde ajudar a empurrar. Noutra, os mesmos fortinhos não se levantaram para um senhor peruano recém embarcado se sentar. Por isso quando me chamavam de “gringooo!” eu respondia que era Brasileiro. Hoje em dia não sei se teria mais vergonha de ser do país do Trump ou de ser do país do Bolsonaro.

Dormir em hostel caindo aos pedaços, casas de família, pensões, albergues, acampar selvagem, em campos de futebol públicos, ser recebido numa fazenda onde só se falava Quechua, a 4200 metros de altitude, no meio do nada mais nada que eu já vi. Comer pão seco e puro, comida de rua (rua mesmo) com higienie duvidosa, comida azeda, fria e maionese bifásica. Tomar banho frio por 60 dias em clima alpino e mesmo assim escolher mergulhar numa lagoa de degelo. Ter uma desinteria no meio da noite a 4500m de altitude, onde estava 30km a pé de qualquer ponto com vida civilizada. Compartilhar um emoliente na noite gelada, dar carona pras crianças curiosas na bicicleta, comprar chocho, choclo e cancha das agricultoras. Me lembro mais dessa parte simples, do que da paisagem de montanha e picos nevados, e sempre me recordo com sorriso no rosto. Pouco me marcaram as camas confortáveis e comidas sofisticadas, e certamente não me ensinaram nada de novo. As montanhas estão lá pra qualquer um ver, mas a vida ao redor delas não. Me pergunto quase todos os dias: qual o prazer em fazer tudo isso? Alguém me diz! Ainda procuro a resposta.